terça-feira, 20 de novembro de 2012

Pelos comboios de nossa infância

Nosso exército em exercício aquático

Distâncias alongavam nossa valentia, que se estendia além do percurso. O desafio era andar pelo trilho do trem. Mesmo que trem nunca tenha passado e testado nossa coragem bafando nos nossos cangotes.
Mas tinham os preparativos. Doces e salgadinhos indecentes socados numa sacola. Duas botas para vinho espanholas que meu pai emprestava para carregar bebida à tiracolo. Coca-Cola quente e sem gás.
Saíamos anunciando a aventura aos adultos da casa. Fila de moleque farejando descobertas. Era borbulhar de vida brotando da terra vermelha em cupinzeiros destruídos pelas estradas. Aquarela de borboletas tingindo cada curva. Pedras perfeitamente roliças a pesar como tesouros nos bolsos.
E iniciava sinfonia. Tum, tum, crec, crec, chuf, tum. Cada passada burilava uma nota musical em trilhos abandonados, ora cobertos de pedra, ora por mato ou barro.  Perna curta do irmão mais novo descompassando de leve a batucada. Um metrônomo convidando o pensamento voar além dos horizontes.

Os horizontes para nós eram os mais incríveis, embora fossem singelos campos carecas e plantações de cana. Mas haviam as mamonas que nos ofereciam espinhos gostosos de acertar em perna desavisada. Carecas de padre pedindo para serem sopradas. Teias de aranha brilhantes ao sol. Calangos sorrateiros farfalhando encostas e despertando sustinhos gostosos na gente.
 
A bolsa passava de boca em boca distribuindo a bebida, que escorria pelas bochechas coradas, pintando camisetas imundas. Andávamos, suávamos, cansávamos, comíamos e voltávamos.  O passeio podia durar alguns minutos ou longas horas.

Novidade somente era nova cerca, plantação ou toca de bicho. Emoção forte mesmo foi um mergulho em lagoa que resultou em cortes no pé de um dos soldados. Foi quando o batalhão compenetrou-se em logística de resgate baseada em chamar um pai solícito. Ou riscos altíssimos presenciamos quando meu irmão mais velho caiu da pinguela de cabeça numa fossa. Riscos sanados com banho ainda mais reforçado de Lysoform.
Os brinquedos seguiam-se em cavernas cavadas nos montes de terra vermelha. Piscina plástica com mais mijada do que água. Rondas alucinadas pelas campas do cemitério vizinho. Réplicas de carrinhos de rolimã com rodas de carretéis de linha gigantes descartados pela fábrica do bairro.

Infância era diversão. Era ser valente sem precisar de motivo. Era acumular tesouros sem ter que comprá-los. Simplesmente por que éramos crianças éramos felizes. Uma jornada boa de percorrer de volta para encontar nosso maior aprendizado. A alegria genuína de apenas andar pelo trilho, sem nunca se cobrar um destino, mas sempre cultivando a certeza de gozar cada momento do caminho.

3 comentários:

  1. Adorei o texto, me lembrou realmente cada passo de nossas aventuras!!
    Já disse uma vez e repito, escreva logo um livro, você manda muito bem!!!
    Bjocas do irmão descompassado!!

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  2. Fofo! Apenas uma lembrança boa, nada que recheie um livro.
    Descompassado não, de perna curta.
    Beijoca

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  3. Maravilhoso. Revivi cada momento e cada palavra. Emoção a cada parágrafo e uma doce lembrança no final.
    Adorei, concordo com o irmão descompassado.

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