quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Chapada em delicadezas

Quando o itinerário da alma tem destino imprevisível e muito além do corpo, uma viagem cumpre seu papel. E quem de fato se propõe a conhecer a Chapada dos Veadeiros (GO) surpreende-se o quão distante pode chegar. E assim, eu fui, sem saber que iria tão longe.

Olho de gente da cidade é anêmico por conta da dieta pobre de horizontes. Quando exposta a um banquete, demora um tantinho para digerir cor e amplidão fartas. E o céu de Goiás vai como que nutrindo olhares em grandes goles de um azul incomparável ao longo da estrada judiada que liga Brasília à Alto Paraíso.




 E depois que o olho fica sedento por mais goles, a gente se embrenha no Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. Dos grupos que se formam na entrada, nosso grupo tinha Andrew, um médico americano interessado em tratamentos medicinais alternativos e em conhecer  João de Deus, um médim curador que atrai multidões de todo o mundo para Abadiânia (GO), cidade que o gringo pronunciava como algo parecido como vagina, provocando gargalhadas.

O guia de nosso grupo foi Rafael de São Jorge, nome do pequeno município onde fica a entrada do parque. Rafael estudou quatro anos de biologia, desistiu da graduação e se especializou por conta própria em guiagens científicas. Ele é um dos apenas três guias que fala inglês fluente no parque. Aceitou guiar nosso grupo se aceitássemos que ele mostrasse a Andrew todas as plantas de uso medicinal pelo caminho em inglês. Ninguém pensou duas vezes, parecia mais um presente. E Rafael foi nos apresentando as plantas como quem introduz velhos conhecidos, nome popular e científico e seus diversos usos. 




Um dia de enormes horas de caminhada em meio ao cerrado, e o corpo expandindo limites do cansaço. A compensação foi meditar à beira de enormes canyons e nadar nas cachoeiras da Louquinhas, assistindo um louquinho sob efeito de beberagem de Santo Daime se batizar comicamente nas águas, para desespero dos salva-vidas do parque. Final do dia regado à muita cerveja no pequeno Bar do Pelé e depois muita comida "home-made" na Dona Nezinha. Nosso médico americano enlouqueu os locais habitués alcolizados do pequeno estabelecimento com sua língua enrolada. O que esse "homi" está falando enrolado, eu não dou conta, porra - repetia o mais conversador deles. Em compensação, o simpático garçom da Nezinha arrancou aplausos arranhando o inglês aprendido nas ruas.




E conversa boa, junto com comida melhor ainda é o que não falta entre esses goianos. Segundo Daniel, doce e falador garçom da nossa pousada, na palhoça do seu Waldomiro, come-se a melhor matula da região.  Comida de boaideiro, ex-ocupação do dono do lugar, que recebe a todos com abraços na porta do carro e só não senta de vez nas mesas para a prosa porque tem muita gente para conversar. Cozinhar ele aprendeu com a mãe, hoje divide o negócio com os seis filhos e agregados que chegam a dezenas. Faz pinga e licor de sabor doce e amargo também, esse para temperar a vida, já que a dele, segundo o próprio, já é muito doce. A minha pinga foi com arnica. O doce de leite vem no pote com as colheres junto para mandar ao diabo qualquer dieta. E o doce de casca de laranja trouxe o carinho da lembrança dos doces da minha tia-bisavó Dula.
  




Andei pelo Vale da Lua, uma impressionante superfície de rochas entrecortadas por um rio. À noite, nadei em piscinas termais rodeadas de sapinhos que coachavam loucamente, tentando expulsar turistas indesejáveis de seu ofurô natural. Alimentei dezenas de pernilongos famintos. Deixei pedaços de pele nas ranhuras das pedras em alguns tombos. Trouxe uma dezena de roxos, dores musculares e uma alma expandida que quase não se cabe em mim.

No parque, ao longo da trilha, a vegetação mostrava sinais de carbonização, principalmente nos troncos de árvores que insistiam em desenvolver folhas verdinhas. O guia Rafael explicou que incêndios por causas naturais, como raios, são comuns no cerrado. O fogo é rápido como uma lufada de vento. Transforma matéria orgânica em mineral, facilitando a fertilização do solo rochoso do lugar.

O cerrado é pouco resistente ao fogo, mas extremamente resiliente, pontuou Rafael. Em comparação com outros habitats, embora incendeie facilmente também tem enorme capacidade de recuperação, fazendo do fogo um instrumento para fertilidade. E eu com meus botões, fiquei pensando na minha alma, tão incendiada e recuperada como o cerrado. E gostei ainda mais daquele lugar que já me mata de saudades.






  As fotos sensacionais são do meu companheiro de viagem, meu irmãozinho caçula, no momento, mais velho que eu três anos, e muito paciente com meu atrapalhamento em terrenos acidentados.

14 comentários:

  1. Fertilização! Essa capacidade que o ser humano tem de irrigar material e perspectiva "nova" é maravilhosa. Esse seu olhar é algo singular.
    Adorei o texto, sua singeleza e forma como retrata e compartilha a experiência.
    Parabéns

    Bj
    Denis

    PS: Alto do Paríso é o lugar dos místicos, há uma comunidade espiritualista lá, já me contaram.

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  2. Grande Ju. Texto perfeito de um repórter e redator que faz de pessoas observadas divertidos personagens. Mas e a Juju onde está? Como sempre não vemos, nem reconhecemos, escapa como água.
    Prefiro imaginar que ficou a nadar nua no lago onde só os sapos viram a pele ralada e queimada de sol.
    bj

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  3. Oi Juju ! Ai querida eu viajei grandemente dentro desse seu texto, estava mesmo lá, sentindo o sol, olhando as paisagens, comendo as delícias e me ralando também, sabia ?? Me deu uma baita vontade de viajar...

    Sinto falta de pegar minhas bagagens e sair Brasil afora, ainda demora um tempo mas logo quero voltar a poder fazer isso e a Chapada está entre um dos destinos que quero muito irrrrrrrrrr.... Te sigo sempre. Grande Beijo.

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  4. Ei, pessoal, num lugar lindo e astral como esse, não é difícil ver lindura e se encantar de se perder. O texto é só consequência.

    Denis, ouvi até história de Ovnis, mas João de Deus é impressionante.

    Paulinho, Juju toda descabelada, enlameada e ralada em fotos, nunca!!! Nem pelada rolou, tem um monte de placa proibindo, viu??

    Van, cata as malas e se manda. Estou doidinha para ir para Chapada Diamantina, quem sabe a gente se rala por lá?

    Beijocas!!!

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  5. Viajei, no texto. Fiquei com água na boca. Não só dos doces,mas, da viagem.

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  6. Aaaaaaaamei o texto Ju!
    parabens e obrigada por guardar todas informações e pela incrível companhia :)

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  7. Mô, eu também curti demais a companhia. Foi uma viagem sensacional. Estou doidinha para ver suas fotos. Beijão!

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  8. Juju...texto maravilhoso!! Adorei, lembrei de cada detalhe da viagem...

    Beijos

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  9. Rafinha e achei maravilhoso podermos viajar juntos. Quero muito repetir, se você tiver paciência, tá?? Bj

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  10. Ah é assim!? todo mundo viajou, a Mo, o Rafis, o mala e nem me convidaram?!
    Po! mancada hein Jujuba
    bj

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  11. Paulinho, vambora? Sou como o Sidney, me chama que eu vooooooou. Minha mala está sempre pronta.
    É só sugerir o próximo destino.
    Beijoca

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  12. Opa! vamo que vamo na minha garupa tem sempre lugar. olha que eu cobro hehehe
    Chile, vamos nessa?

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  13. Juju, se vc resolver trocar o patins pela montanha, acessa:
    http://www.montanhismo.org.br/
    Tenta ir na reunião geralmente as quartas e como falei adrenalina te faz vivo.
    Bju

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