segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Afogando tartarugas

Eu e meu irmão tínhamos duas tartarugas.  Entediadas pela vida aquática, elas insistiam em pular do aquário. E caminhavam camufladas pelo tapete verde da sala ou pelas lajotas verdes do quintal. Em cada fuga, uma gritaria. Criança da cidade não bota mão em coisa viva. E minha avó saia à captura dos bichos. Xingando em portunhol enrolado, despejava as pobres de volta ao cativeiro envidraçado.

Foram muitas tentativas de exploração terrestre, até que minha avó, exasperada pelas caçadas imprevistas, resolveu definitivamente o assunto. Jogou as tartarugas na privada e deu a descarga. Sem muitas explicações, porque espanhola resolve, não explica.

Ela imigrou ao Brasil, depois de uma longa estadia em campos de concentração na França para fugitivos da Guerra Civil Espanhola. Chegou com outros espanhóis que, por fim, voltaram à Espanha. Perdeu o marido cedo. Tornou-se uma mulher prática.Vivia só, resolvia as coisas a seu jeito, mesmo que tivesse que afogar tartarugas. Creio que nem feliz nem triste. Aceitava resignada o exílio que a vida, as guerras, a distância lhe proporcionaram.

Aos 87 anos, adoeceu gravemente e passou cerca de três meses encerrada num quarto cinza de hospital, ligada a um respirador. Nesse período, não aceitava televisão, rádio, livro ou qualquer distração que lhe amenizasse o calvário. Passava horas de olhos fechados, só o som mecânico do pulmão imposto a marcar tempo. Não sei o que pensava. Acredito que recuperava os fatos que ao longo da vida teve que esquecer para sobreviver.

Mais de uma vez, ela sugeriu que a desligassem daquela máquina irritante. Hoje, acredito que era a melhor alternativa, dadas as condições. Mas com 19 anos,  eu só conseguia me horrorizar e cantar. Das poucas canções que ela aceitava ouvir era "Maria Bonita", que segundo meu pai, foi a prefirida do meu avô. Uma linda letra que fala justamente de lembranças. Exaltava recordações de um homem apaixonado. Talvez meu avô cantasse para ela, que também era Maria.

Quando ela se foi, sobreviveu comigo a tristeza de ter acompanhado seus últimos dias. Mas minha avó era a sobrevivente, e me mostrou que tudo aquilo que chateia merece ser descartado, sem explicações. Isso é ser sobrevivente. 

Desde então, eu me tornei especialista em descartar fatos desagradáveis. E quando não suporto mais tantas tartarugas afogadas, ao meu redor, busco meu consolo. Lembro que até minha avó, uma espanhola, endurecida pela guerra e campos de concentração, sobreviveu, e conseguiu salvar até o fim sua Maria Bonita.

"Acuérdate de Acapulco,
de aquellas noches,
María bonita,
María del alma.
Acuérdate que en la playa
con tus manitas
las estrellitas
las enjuagabas
Tu cuerpo del mar juguete,
nave al garete,
venían las olas,
lo columpiaban,
y mientras yo te miraba,
te juro con sentimiento,
mi pensamiento te traicionaba".

Augustín Lara

5 comentários:

  1. Tem certos fatos que calam fundo, que as lágrimas, não só escorrem do olhos como do coração. Esté é um deles.
    A lição que tua avó deixou é que a dor pesa e não ajuda a viver.
    A amargura e a raiva acabam conosco, pouco a pouco, e como algo superfluo precisam ser descartadas, pois, não nos permitem ver o que há de bom na vida e quando necessário, a sobreviver.

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  2. Fala Juju.
    Puxa!Ainda bem que a vovozinha não teve essa idéia prática com os netinhos pentelhos.
    Que Deus a tenha (as tartarugas).
    bj

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  3. ah ju! ao ler seu texto, lembrei da minha schmoo querida... minha companheira de madrugadas insones, que dormia no meu quarto e viajava comigo... ela foi morar no lago do parque da água branca porque ficou grande demais para o tanquinho do quintal de casa... você sabe que nem todas as tartarugas são afogadas por mulheres à beira de um ataque de nervos (vovózinhas ou não)... algumas tartarugas realmente melhoram de vida hehe até hoje, entretanto, fico melancolicamente tentando reconhecer a schmoo dentre as simpáticas tartarugas do lago do parque!
    beijinhos para você ju-florzinha :O)

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  4. ps: não encare meu comentário como uma chacota... você bem sabe como é difícil para mim não afogar algumas tartarugas que me atormentam, ou não lembrar das inumeráveis tartarugas que não tiveram um destino feliz (mesmo quando afogadas por outrem)... escrevi para você até para me convencer de que ainda acredito que algumas coisas possam dar certo...porque não devemos desistir... certo? fados familiares entristecem... mas, é preciso reinventá-los!
    "É preciso, pois, fingir não saber quem se refletirá no fundo do espelho e interrogar esse reflexo ao nível de sua existência". (As palavras e as coisas, Michel Foucault).
    outro beijo :O)

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  5. Queridos, obrigada por lerem essas minhas lembranças, que por vezes me afogam mas também me dão recheio para seguir. É meu inventário de cicatrizes, sem melancolia, apenas organização de sentidos.
    (Focaultzinha, como me esquecer da schmoo e da dona que a conseguiu perder umas 15 vezes numa viagem em Ubatuba, lembra?)

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